Nilberto M. Amorim
Igrejas e telas
Um conjunto de transformações sociais e culturais de larguíssima escala opera-se em nossos tempos. Trata-se, mais propriamente, de uma revolução, a pôr em xeque formas e normas de vida desde há muito estatuídas, a alterar noções de espaço e tempo, de global e local, de distante e de próximo, da mobilidade e do confinamento, do real e do virtual. Ela é de tal ordem que transforma o próprio modo de ser do homem e da sociedade. Significa dizer que ela está alterando relações, processos, sistemas e estruturas em todos os âmbitos da existência humana. Que trouxe mudanças no plano da mente, da reflexividade, sensibilidade e ação dos sujeitos. Que modificou os ambientes do cotidiano, da comunidade, do local de trabalho, da festa, da sala de aula, do culto e etc. Construiu e constrói uma nova cena social que dá origem a novos códigos e linguagens, novas mentalidades, padrões de relacionamentos entre as pessoas, bem como de instrumentos para se perceber e expressar o mundo. E, neste exato momento, estamos todos vivendo isso. Poderíamos dizer que estamos assistindo ao surgimento de um novo mundo.
E evidencia-se ao olhar que as tecnologias da informação e comunicação são uma das principais forças constitutivas desse mundo que surge. Neste momento em que a humanidade é surpreendida com o advento da pandemia da Covid-19, isso se clarifica e, mais do que nunca, se elucida a procedência dos nomes designando a sociedade em que vivemos: “Sociedade em rede”, “Sociedade eletrônica”, “Sociedade plugada”, “Sociedade informacional”, “Sociedade das telas”, etc. Daí, observar-se que uma das mais ilustres vedetas dessa sociedade se espalha em quantidade oceânica por todos os cantos do planeta: a tela. E quem diz “tela”, diz “olhos”; ou melhor, diz da propensão que sempre acompanhou o homem - o de se deixar atrair e capturar pelos olhos, ou pelas imagens que as telas lhe oferecem. No presente caso, porém, as telas vão assumindo o controle da vida. Constata-se que, hoje em dia, o homem “nasce, vive, trabalha, ama, se diverte, viaja, envelhece e morre acompanhando, em todos os lugares por onde passa, por telas”. Com elas, vivemos nosso cotidiano; desde as imagens do feto na ultrassonografia até a escolha do caixão e modelo de túmulo disponíveis em sites. É a telematização do mundo e da vida.
Ora, as mudanças da nossa época atingem as igrejas com extremo rigor. Atingem, primeiro, no próprio modo de se situarem no local de pertencimento - no jeito de ocupação territorial requerido por uma igreja batista local. Sabemos que cada igreja tem o grande desafio de realizá-lo de modo singular e inigualável. A territorialização, especialmente em se tratando de igreja, não se dá meramente no nível da fisicalidade de instalações prediais, mobiliária e de equipamentos num determinado endereço geográfico. É preciso considerar a natureza das forças que fazem uma igreja se instalar. É preciso presumir que cada igreja possui uma história, detém formas próprias de ser; tem ritmos, capacidades, visões de mundo, doutrinas e linhas mestras a lhe servirem de balizas. Tudo isso envolve pessoas com sentimentos, ideário, fé e alma; envolve expectativas, conciliações, entrelaçamentos e aglutinações de várias espécies. Compreende um modo de inserção social num determinado e específico local – reiteremos isso.
A questão é que, doravante, as coisas se complicam imensamente; a digitalização da sociedade acarreta o estilhaçamento da própria noção de território, espaço, localidade, região e etc., de onde resultam novos deveres e novas responsabilidades para as igrejas. E é a própria obviedade dizer que cabe a elas estarem “em dia” com as mídias audiovisuais, e que, “plugadas”, logrem ampliar ilimitadamente o alcance dos seus espaços por via dos recursos que o endereço eletrônico proporciona (estamos deixando de lado aqui o grave problema das igrejas em situação de “exclusão digital” – seja por não dominarem o “sotaque” das tecnologias, seja por carência de recursos ou por se localizarem em regiões “excluídas” do país). Mas, que as igrejas nunca se esqueçam: conexão com a sociedade das telas é conexão com a “sociedade da sensação” – assim chamada porque as pessoas que a povoam, apesar da sua imensa diversidade, vão se transformando – todas elas – em destinatárias de mensagens e “choques de imagens”. No limite, porque aí se cultiva imperativo categórico rezando que ser é ser percebido – não por causa das faculdades de pensar, está claro, senão devido ao prazer das estimulações dos órgãos dos sentidos proporcionados com fartura por esse berço social. E igrejas há que incorrem no grave erro de contribuírem para alavancar tal tipo de ambiente; pautam-se no paradigma televisivo que avança com poderio enorme sobre os indivíduos, destes interessando-lhes, prioritariamente, o aparelho sensorial da visão; produzem e fazem circular belas e espetaculares imagens, mas esvaídas de alma, de substância e da mensagem do Senhor Jesus. É inaceitável, porém, que o cristão se preste a tal redução, posto que a sabedoria da Bíblia eleva o ser humano à imagem e semelhança de Deus, ou seja, é irredutível à dimensão corporal apenas: “O espírito do homem é a lâmpada do Senhor, a qual esquadrinha todo o mais íntimo do corpo.” (Pv. 20:27).
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