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CadĂȘ nossos hinos?

  • Foto do escritor: Nilberto M. Amorim
    Nilberto M. Amorim
  • 8 de set. de 2021
  • 5 min de leitura


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A diretoria da Igreja Batista do Ipiranga, SĂŁo Paulo, reunida em fins da dĂ©cada de 1970, foi surpreendida com um assunto candente e fora de ordem e de pauta, cujo impacto dividiu as pessoas presentes em dois grupos opostos. Irrompeu em forma de queixa de alguĂ©m desapontado com o tipo de mĂșsica que, Ă  Ă©poca, invadia as igrejas. O pastor Artur Gonçalves, dirigente da reuniĂŁo, lidou sabiamente com a situação e, por final, voltou-se para o ministro de mĂșsica da igreja, MarcĂ­lio de Oliveira Filho, fazendo-o ver que os novos tempos requisitavam firme posicionamento dos mĂșsicos batistas brasileiros.

Artur Gonçalves-MarcĂ­lio de Oliveira Filho: um caso de palavras certas para o homem certo. MarcĂ­lio de Oliveira Filho era mĂșsico, professor da matĂ©ria na Faculdade TeolĂłgica Batista de SĂŁo Paulo, arranjador, formado em teologia e, ademais, dotado de capacidade de diĂĄlogo, liderança, prontidĂŁo e dinamismo para o trabalho de Deus. Ele saiu da reuniĂŁo tomado pela consciĂȘncia que Ă© prĂłpria Ă  de alguĂ©m poderosamente chamado para uma missĂŁo.

A missĂŁo, no caso, vinha a ser a revisĂŁo, atualização, ampliação e reconfiguração do jĂĄ consagrado Cantor CristĂŁo (CC). Em outras palavras, aquela reuniĂŁo seria o marco inicial de uma constelação de passos articulados que desembocaria no evento HinĂĄrio para o Culto CristĂŁo (HCC). Ao fazer face a uma necessidade urgente, ela, desde logo, se expandiu, ultrapassou fronteiras e logrou acolhimento por toda parte. NĂŁo tardou a converter-se em movimento envolvendo gente aos milhares, sendo imediatamente Ăłbvio que se tratava de empreendimento que exigia mobilização, em nĂ­vel nacional, de uma sĂ©rie de grupos de trabalho compostos por mĂșsicos, poetas, arranjadores, linguistas, teĂłlogos, historiadores e outros.

Resta claro igualmente que o HCC veio Ă  luz guiado por premissas consistentes e fundamentais. Uma delas, sem dĂșvida, consistia na preservação do patrimĂŽnio recebido das geraçÔes anteriores; Ă© patente que os seus formuladores cuidaram de dar continuidade e complementação ao legado intelectual e artĂ­stico-teolĂłgico que viera antes deles. De fato, nĂŁo se pode falar da passagem do CC para o HCC omitindo-se a conduta da “superação que conserva”, vale dizer, a conduta decisiva de se introduzir aperfeiçoamentos a uma realidade existente, sem, contudo, negĂĄ-la ou destruĂ­-la. E bem se sabe que, a tal respeito, os elaboradores do HCC foram irrepreensĂ­veis. Eles nĂŁo fizeram tabula rasa do que jĂĄ existia, antes, buscaram conciliar o antigo com o recente, o passado com o presente, o clĂĄssico com o popular. Sobretudo, souberam incorporar novas produçÔes Ă s que jĂĄ haviam passado pelo teste do tempo, garantindo, enfim, a reuniĂŁo dos dois universos – o do “antes e o do contemporĂąneo”; o do universal com o paroquial.

Assim Ă© que o HCC significou enorme salto qualitativo e marco na histĂłria dos batistas. Na verdade, ele constitui obra-prima, ou se preferir, um acervo de obras-primas, contemplando inspiração divina, beleza, poesia e melodia da melhor qualidade. É, sobretudo, expressĂŁo do cristianismo autĂȘntico; Ă© ponto alto de excelĂȘncia doutrinal-teolĂłgica. E nĂŁo hĂĄ de se esquecer, ademais, que representa precioso atributo identitĂĄrio, no sentido de haver dotado a nĂłs batistas de um distintivo grande e nobre, denominacionalmente falando, em meio ao caos da diversidade que divide os evangĂ©licos.

Ocorre que MarcĂ­lio e seus pares realizaram sua obra quando se viviam os rescaldos dos rebeldes anos 1960, Ă©poca de tempestades culturais. de rupturas, polaridades e prodigiosas transformaçÔes, a qual – todos sabemos – deu feição e destino Ă  civilização ocidental que se seguiria. ImportantĂ­ssimo constatar, que jĂĄ entĂŁo se instaurava a “sociedade da sensação”, assim chamada porque Ă©, antes de tudo, sociedade do audiovisual, e porque as pessoas que a povoam, apesar da sua imensa diversidade, vĂŁo se transformando – todas elas – em destinatĂĄrias de mensagens e “choques de imagens”. Por ser, em suma, um ambiente cultural produtor de vivĂȘncias e estados de excitação permanentes, cada vez mais alastrado de indivĂ­duos buscadores de emoção, de gente que vive de atração em atração, de moda em moda, ou em febre consumista, querendo sensaçÔes, buscando e entregando-se ao choque de imagens. No limite, porque surge a dita “sociedade lĂ­quida”, na qual, regida que Ă© pela lĂłgica da impermanĂȘncia, tudo caduca velozmente.

Tal cultura penetra profundamente no seio da igreja e acarreta-lhe mudanças drĂĄsticas no formato dos cultos, sendo o estilo de mĂșsica exemplo perfeito disso. MĂĄrio Vargas Llosa, prĂȘmio Nobel de literatura, em A Civilização do EspetĂĄculo – uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, faz pronunciamento sobre o fenĂŽmeno da musicalização da cultura, de que a igreja cristĂŁ nĂŁo escapa: “
 se inverte, secularizado, o espĂ­rito religioso que, em sintonia com o viĂ©s vocacional da Ă©poca, substituiu a liturgia e os catecismos das religiĂ”es tradicionais por manifestaçÔes de misticismo musical: assim, no compasso de vozes e instrumentos exacerbados, que os alto-falantes amplificam monstruosamente, o indivĂ­duo se desinvidualiza, transforma-se em massa e, de maneira inconsciente, volta aos tempos primitivos da magia e da tribo”. Guardadas as devidas proporçÔes, a formulação do prĂȘmio Nobel coincide com a do pastor JĂșlio de Oliveira Sanches no corajoso artigo A ditadura dos decibĂ©is (Jornal Batista, 10/8/2014, pg. 3), referindo-se ao estilo e conteĂșdo da mĂșsica que predomina nas reuniĂ”es convencionais da denominação: “Culto significa comunhĂŁo, edificação e oportunidade para ouvir a voz divina. Hoje as mĂșsicas sĂŁo estressantes. Os solistas disputam para ver quem grita mais alto. O baterista quer suplantar a guitarra. A guitarra, o baixo. O dirigente suplanta a todos, com aleluias fora do contexto.”

Eu vou alĂ©m. A “ditadura dos decibĂ©is” das reuniĂ”es convencionais apenas repetem o que ocorre em muitas igrejas de forma radicalizada. E em tal ambiente o HCC estĂĄ sendo banido. Pasmem-se: Bach, Beethoven, Handel, Lutero, John Newton, Jane Fanny Crosby, Oswald Jeffray Smith, Wilson Faustini, Isaac Nicolau Salum, Ralph Emanuel, MarcĂ­lio de Oliveira Filho, Almir Rosa, Nabor Nunes e centenas de outros que figuram no HinĂĄrio para o Culto CristĂŁo, sĂŁo aposentados nos cultos batistas ou postos para trĂĄs pelos “levitas” da hora presente. “Culto Ă© comunhĂŁo e edificação”, pastor Sanches? Culto significando, inclusive, oportunidade para o congregado defrontar-se com a prĂłpria interioridade (aĂ­ estĂĄ Deus), em sĂ©ria confabulação Ă­ntima ou “tomada de consciĂȘncia de si”? Pois eu afirmo que, cada vez mais, constatam-se deslocamentos e inversĂ”es dessa noção, prevalecendo o figurino em que o prĂ©-racional, o pictĂłrico e o sensorial tem precedĂȘncia sobre o logos discursivo ou o espiritual da Palavra. De resto, estandardizam-se cultos em que performances de palco, corpos dançantes e estridĂȘncias de guitarras elĂ©tricas negam o prĂłprio sentido de mĂșsica (“mĂșsica Ă© a ciĂȘncia do bem modular”; Ă© “ciĂȘncia do movimento bem medido” ou ainda a “ciĂȘncia da harmonia”!).

Em conclusĂŁo, Ă© preciso advertir que ninguĂ©m estĂĄ aqui a fazer apologia do passado; que, tampouco, somos movidos por nostalgia ou desejo de que “tudo volte como era antigamente”. No entanto, em face das “guerras do louvor”, em que o absolutismo da tradição defronta-se com o absolutismo da inovação, nenhum dos dois extremos nos convĂ©m. De modo que, no presente ato, clamo contra o absolutismo de uma inovação que Ă© origem e causa do desaparecimento do HCC – verdadeiro patrimĂŽnio da humanidade – e impĂ”e totalitarismos Ă s igrejas tanto de estilos quanto de instrumentos musicais “exacerbados”.

A “sociedade excitada” avança com poderio enorme sobre os indivĂ­duos, destes interessando-lhes prioritariamente o aparelho sensorial. É inaceitĂĄvel, porĂ©m, que o cristĂŁo se preste a tal redução, posto que a sabedoria da BĂ­blia eleva o ser humano Ă  imagem e semelhança de Deus, ou seja, Ă© irredutĂ­vel Ă  dimensĂŁo corporal apenas: “O espĂ­rito do homem Ă© a lĂąmpada do Senhor, a qual esquadrinha todo o mais Ă­ntimo do corpo.”

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