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Sociedades do cansaço


São instigantes os termos com que os autores caracterizam as sociedades em que vivemos: “risco”, “corrosão”, “cinismo”, “relativismo”, “liquidez”, “hiperindividualismo”, “pós-modernidade”, “pós-verdade”, “pós-dever”, “nova idade das trevas” etc. No entanto, “cansaço” não deve faltar ao léxico, tendo em vista o que escreve Biung-Chaul Han em Sociedade do cansaço (Petrópolis, Vozes).

Eis livro que satisfaz nosso desejo de explicação acerca dos padecimentos que acometem os indivíduos da nossa época: burnout (exaustão), depressão, estresse, hiperatividade, histeria, transtorno de personalidade limítrofe, déficit de atenção, drogadição, enfartos, suicídios e, por aí vai. É preciso dizer muito depressa, porém, que, segundo Han, tais males originam-se do ambiente social e cultural – das suas leis e do modo pelo qual ele se organiza e funciona.

Tem-se, então, um relato do check up que o autor realiza num corpo enfermo, vale dizer, da realidade social em que vivemos com nossas crenças, práticas e escolhas. E o diagnóstico, lúcido, expõe não só a gama de adoecimentos, mas as condições em que estes são produzidos, explicando que cada época se distingue das outras justamente em virtude das doenças típicas ou fundamentais que engendra. Assim é que Han, valendo-se de pontos de vista da biomedicina, classifica como viral e bacteriana a era anterior à nossa, enquanto que esta – século 21 – é por ele chamada de neuronal. No primeiro caso, o surgimento das patologias, segundo ele, liga-se à relação do indivíduo com o “estranho”, o “outro”: vírus, bactéria ou germes nocivos, que são combatidos com técnicas imunológicas (vacinas, antibióticos etc.). O indivíduo, em tal situação, se defronta com a alteridade, melhor dizendo, com a negatividade dialética que a relação com o “não eu” acarreta (pois, o “outro”, de algum modo, sempre implica “esbarro”, limite, regra, oposição que polariza etc.). A tese do autor clarifica-se quando se desloca da perspectiva biomédica para a teoria social, trazendo como exemplo o ambiente das guerras, principalmente da “guerra fria”. Os campos aí se repartem entre o “nós” e “eles”, sendo estes últimos considerados “estranhos” a serem eliminados, para a proteção do self/nós. Inversamente, as patologias típicas da nossa era têm índole neuronal. Primeiro, porque afligem a vida psíquica e espiritual dos indivíduos, segundo porque a explicação de suas origens é indissociável das particularidades únicas de nossa “sociedade produtiva” (do desempenho, empreendimento, eficiência). A diferença é crucial. Aqui, o individuo não só está livre de polarizações ou da negatividade representada pelo outro, mas se vê instigado pela positividade (excessiva afirmação das capacidades produtivas do indivíduo).

E eis o ponto decisivo. Os males denunciados por Han atingem em cheio as escolas. Síndromes do “mal-estar” docente e do “w.o. pedagógico” disseminam-se amplamente. Tornaram-se clássicos no Brasil os estudos de Wandeley Codo sobre burnout, síndrome que vitima certos profissionais, em particular os da área da educação. O nível de envolvimento e responsabilidade e, ao mesmo tempo, de desgaste e insucesso desses profissionais é de tal ordem que dá origem a um complexo de sintomas: exaustão emocional, despersonalização, falta de envolvimento, frustração, atitudes de pessimismo, desesperança e outros. E justo a escola que, por sua distinta e mui especial missão, se quer cheia de vida e entusiasmo.

Definitivamente, a “sociedade do cansaço” analisada por Han constitui árduo teste para uma escola já definhada. Colocam-lhe novas exigências em termos de formação e capacitação dos profissionais; obriga-a à conversão de mentalidades, redefinições de funções e de modo de operar. Ou seja, a escola é desafiada a uma luta de vida ou morte em meio ao cansaço avassalador do seu entorno.

Nilberto de Matos Amorim

(Publicado no Jornal Apase, Julho de 2018, p. 10)

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