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Ensino religioso no Ensino Fundamental: um ponto de vista

Publicado originalmente no Jornal dos Professores, São Paulo, em novembro de 1994


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Com efeito, muitos há que recepcionam a medida com bastante reserva ou resistências. Avaliam que o gênero de ensino tornado obrigatório pela resolução, uma vez verificada opção por parte do aluno, é demasiado complexo, ou que as condições gerais para sua viabilização apresentam-se extremamente adversas. Acrescem ainda outra razão para manifestarem discordância do ensino religioso na escola: a convicção de que religião é questão que diz respeito exclusivamente à esfera privada, íntima e particular do sujeito individual, logo deve ser deixada à alçada deste, não devendo a escola nela se imiscuir.

De outro lado, porém, existe certamente uma infinidade de outros educadores que, em sentido inverso, julgam a decisão do secretário da Educação não só acertada mas louvável e oportuna, posto que advogam a formação religiosa na escola como obrigatória e urgente. A matéria, realmente controvertida e candente, merece reflexão detida.

O fato é que, sem dúvidas, poder-se-ia recorrer a um rol infindável de pressupostos e argumentos convincentes para defender e justificar a introdução do ensino religioso no Ensino Fundamental. Não podendo nos alongar em arrazoados neste momento e lugar, devido ao senso de brevidade que nos guia, somos, no entanto, irresistivelmente compelidos a tentar compreender e trazer presentes aqui argumentos a respeito da natureza do homem e da sua crise neste fim de século e de milênio, argumentos mais que suficientes para amparar a autoridade legisladora e, de resto, até mesmo o leigo, o homem simples do povo, ao advogar religião no currículo das crianças e adolescentes.

É verdade, o homem ocidental vive, na hora presente, vastos e acelerados processos de transformação e, talvez, a sua pior crise: crise espiritual e moral, que é a mãe de todas as outras crises (política, econômica, social, religiosa etc.). A humanidade terá vivido, ao que sabemos, períodos particularmente mórbidos: o nosso tempo parece ser um deles. Senão, por que a violência selvagem e sanguinária, as carnificinas, as barbáries, o desencanto, a perda das grandes ideias e das grandes utopias e esperanças? Senão, como explicar a cultura do consumismo desenfreado, do uso irracional de medicamentos, e por que o alastramento das drogas psicotrópicas em escala tão inquietante? Por que as exclusões sociais, a escalada da fome, da miséria e das epidemias; por que a destruição do planeta?

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Um grande desafio

Muito comuns são referências a respeito do “mal-estar” que atualmente acomete a civilização em que vivemos, “mal-estar” que, convenhamos, se revela à evidência do olhar. Os críticos e analistas descrevem o “quadro de sintomas” em termos de “caos”, “irracionalismo”, “mudanças aceleradas”, “desencanto”, “crise de legitimidade”, “esgotamento de valores” e assim por diante. Em suma: o homem dos nossos tempos, dizem, está à deriva, sem bússola e sem compasso.

Registra-se também que a matéria, objeto da lei recente, enseja meditação sobre a natureza humana. Observando bem o homem, notamos em sua identidade profunda e essencial um ser extraordinário e único, mas, paradoxalmente, um ser múltiplo, dilacerado por mistérios, carecimentos, vazios e sedes infindas. O dado real é que está confinado a uma realidade de contingência e finitude, de pequenez, insuficiências e experiências dolorosas (perdas, desenganos, lutas, desastres, desamparo, morte etc.). Mas não é só isso. Todos sabemos que o homem de qualquer tempo ou idade é um ser premido por buscas e questões dramáticas, tais como felicidade, liberdade, escravidão, mortalidade, Deus. A religião cumpre, neste particular, função insubstituível. Não é sem razão que a religiosidade se faz presente na história do homem e, como uma virtude magnifica mediante a qual pode ele lidar com aquelas cruciais questões, pode remediar seus anseios e buscas de sentido, de infinito, de experiência com o sagrado, de fruição do belo e do sublime. Pode, enfim, transcender, “desprender-se” ou “descolar”, de modo construtivo e salutar, da sua realidade contingente e penosa.

Sendo assim, uma educação ampla e abrangente como a que a escola se propõe promover não deve incluir a formação religiosa? Sendo assim, a formação religiosa não poderia trazer, afinal de contas, benefícios educativos e revelar-se em poderoso elemento educativo no enfrentamento da crise contemporânea — tanto mais quando se sabe que “a educação é uma saída para todas as crises”?

A introdução do ensino religioso nas escolas estaduais esbarra, todos sabemos, em impasses e óbices de várias ordens. Dúvidas, por exemplo, surgirão com relação ao perfil e credencial requeridos dos professores que ministrarão as aulas. Devem ser estes recrutados nos credos religiosos universal e tradicionalmente hegemônicos? Nesse caso, como trabalhar a questão do ceticismo e vazio de credibilidade reinantes atualmente quanto às universalidades e homogeneidades, enfim, quanto às visões unificadoras e globalizantes? Aceitar-se-ão, sem distinção, professores oriundos de todos os credos religiosos? Como as autoridades educadoras devem proceder, então, diante do surto abundante de seitas e crendices dos dias atuais, tantas delas obscuras, bizarras e irracionais — mais empenhadas em proselitismo e doutrinação do que na promoção do homem?

Seja como for, o ponto é que a formação religiosa das crianças e adolescentes nos parece de vital importância. É matéria por demasiado séria para ser rechaçada de modo irrefletido, ou por interesses particularistas, unilaterais e corporativistas.

Por tudo isso, evidencia-se que as autoridades e agentes escolares de modo geral tem diante de si, no que concerne à implementação do ensino religioso, o grande desafio de assumir posturas e decisões segundo princípios livres de paixões, facções, credos ou radicalismos de qualquer espécie, tendo em vista o objetivo supremo, que é o da educação e melhoria do homem e da sociedade.

Nilberto de Matos Amorim

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