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A questão da pós-modernidade: alguns apontamentos

A jet plane flying over the city

Mudanças profundas e aceleradas caracterizam nossos tempos. Na verdade, mais acertado seria nos referirmos à ocorrência de vastas transformações históricas, com efeitos profundos e abrangentes sobre os mais variados níveis do pensamento e da experiência humana. Significa dizer: assistem-se, na presente época, a mudanças com efeitos sobre a totalidade do social e do cultural — sobre os vários sistemas e paradigmas do pensamento político, econômico, filosófico, estético, religioso etc.

Como explicar essas profundas transformações, como poder entender a sua verdadeira natureza e as causas que as determinam? É claro que passos cautelosos são necessários com vista à obtenção de algum tipo de resposta sustentável. Seja como for, dominam-nos a todos o sentimento ou necessidade premente de encontrarmos certas respostas. O que significa, inevitavelmente, ir em busca de apoio em certos autores que tratam da questão. E há, efetivamente, muitos tratando do assunto, embora — e como não é de estranhar — perceberem-se discrepâncias e distanciamentos de pontos de vista entre eles. Há, entretanto, um ponto em que parecem estar visivelmente de acordo. Trata-se exatamente do ponto em que se empregam termos como os que se seguem: “Crise”, “caos”, “mudanças aceleradas”, “mal-estar”, “desencanto”, “ruptura”, “desconstrução”, “ausência de projeto”, “irracionalidade”, “crise de legitimidade”, “esgotamento de valores”, “desreferencialização” etc.

Um dado a ser assinalado logo de início, acerca das verdades, é que estas têm merecido também uma variedade muito grande de explicações, havendo mesmo algumas dentre elas se constituído verdadeiros lugares-comuns. Nesse sentido, é normal defrontar-se com autores associando as mudanças em curso com o “esgotamento da razão moderna”, ou ainda com o “questionamento radical dos fundamentos de toda racionalidade moderna”(1). Com isso, querem eles significar que a crise que estamos vivendo tem muito a ver com a desestruturação dos valores ético-epistemológicos ou com a derrubada dos pilares de sustentação da civilização que foi construída na época moderna, particularmente a partir do século 18. Tais acontecimentos, segundo ainda diversos autores, equivalem ou estariam associados à inauguração de um novo paradigma ou de uma nova sensibilidade, que é a chamada “pós-modernidade”. De acordo com José Luiz Fiori:

“A descrição sintética e consensual da crise contemporânea ressalta o processo de desconstrução das matrizes histórico-científicas e político-ideológicas que organizaram o espectro das opções éticas e comandaram a universalização da história a partir do século 18 (…) A trajetória da crise se inicia nos anos sessenta, foi a partir dali que se iniciou o debate político ideológico, teórico, envolvendo economistas e físicos, historiadores e teólogos, estrategistas e biólogos, arquitetos e outros físicos sobre a chamada pós-moderrnidade, conceito que encobria e tentou homogeneizar a consciência de uma situação de dissolução progressiva dos parâmetros referenciais básicos de organização epistemológica e normativa do conhecimento e da sociedade” (2).

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Retrospecto histórico

Talvez se faça conveniente neste momento um breve retrospecto histórico. As origens da modernidade, sabemos, remontam a certos rompimentos havidos por volta dos séculos 15 e 16, isso para não falar de suas raízes mais longínquas que datam do início do Renascimento. Mas, no século 18, encontramos uma das expressões mais significativas da modernidade, o Iluminismo. O que significa o Iluminismo? Em poucas palavras, diríamos que este se traduz num projeto inteiramente comprometido com a fé na razão humana. Ele foi saudado, na época, como a bandeira de uma nova ordem, garantidora e afiançadora da realização do projeto burguês, equivale dizer, realização de muitas promessas para o indivíduo emergente no período: liberdade, progresso, prosperidade, felicidade, bem-estar para todos. Escreve Sérgio Paulo Rouanet:

“…implicava [o Iluminismo] a fé na razão, em sua capacidade de fundar uma ordem racional, e na ciência, como instância habilitada para satisfazer as necessidades materiais dos homens. Nesses termos, emancipar significava racionalizar a consciência humana tutelada pelo mito, no sentido positivo de usar a ciência para tornar mais eficazes as instituições econômicas, sociais e políticas, aumentando com isso a liberdade do homem como produtor e consumidor de cultura, como agente econômico e como cidadão”. (3).

Parecem dispensáveis, porém, comentários sobre a concretização, no transcorrer da história, dos sonhos e promessas de liberdade, de progresso, racionalidade e bem-estar para os homens, acalentados pela modernidade. Como o senso de síntese e de objetividade deve nos guiar aqui, o fundamental a se extrair de tudo isso é o fato de que observadores insuspeitos estão falando de uma conjunção de eventos e de transformações aceleradas marcando nossa época, e tanto que os leva a se referir a ela como “crísica”; “crísica em virtude de sua feição transicional, de indefinição, imprecisão e falta de contornos, ainda que haja também referências, por parte de alguns, de um possível vislumbre, em meio ao difuso e ao emaranhado dela (nossa época), de novas eras surgindo, em estado de latência ou de “fermentação”.

Se fizemos todas essas considerações precedentes foi no intuito de tentar evidenciar, por seu meio, a ocorrência de certas perdas, dizendo melhor, a ocorrência de um exaurimento relativo a uma série de referenciais e coordenadas que fundamentavam e orientavam a cultura da modernidade ao mesmo tempo que se presencia o surgimento, em seu lugar, da cultura que se tem denominado de “pós-moderna”. Jair Ferreira dos Santos, competente intérprete, oferece-nos uma definição que, sem dúvida, mostra esse seu traço marcante, qual seja, o de se fazer presente na diversidade dos campos culturais:

“Pós-moderno é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o modernismo (1900-1950). Ele nasce com a arquitetura e a computação nos anos 1950. Toma corpo com a arte Pop nos anos 1960. Cresce ao entrar pela filosofia durante os anos 1970, como crítica da cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na música e no cotidiano programado pela tecnociência (ciência + tecnologia invadindo o cotidiano com desde alimentos processados até microcomputadores), sem que ninguém saiba se é decadência ou renascimento.”(4)

Inegavelmente, o trecho citado acima apresenta um repertório significativo de elementos informativos e aptos para nos fazer ajuizar sobre o alcance do acontecimento em discussão. Como já frisamos, vê-se que ele deita raízes profundas em todos os domínios da experiência humana, incluindo naturalmente o campo das ideias e do pensamento político, filosófico, científico, pedagógico, artístico etc., produzindo traços e sinais que definem o contexto sociocultural de nossa época, um contexto de desmedida complexidade, sem dúvida. É verdade que nossas suposições e instituições sobre a pós-modernidade só podem ir até certo ponto, dada a sua condição de vigência e de pleno fluxo, ou seja, de processo não acabado e não encerrado. No entanto, certamente é possível sustentar que a sua compreensão só se torna viável por referência à modernidade. Falando mais precisamente, é forçoso deduzir, pelo que já foi dito, que a pós-modernidade se caracteriza por ser uma crítica ou por ser recusa radical a um conjunto de noções e construções intelectuais do passado moderno. As desconstruções e derrubadas alcançam valores consagrados pela tradição, pelas coletividades globais, pela fé, pela ética, pela ciência; muitos desses valores vindos dos começos da nossa civilização — começos que quase sempre se radicam na antiga Grécia (5). Veja a correlação que Ferreira dos Santos estabelece entre a presença do pós-moderno e o nihilismo:

“O pós-moderno está associado à decadência das grandes ideias, valores e instituições ocidentais — Deus, Ser, Razão, Sentido, Verdade, Totalidade, Ciência, Sujeito, Consciência, Produção, Estado, Revolução, Família. Pela desconstrução, a filosofia atual é uma reflexão sobre a aceleração dessa queda no nihilismo. Nihilismo — da palavra latina nihil= nada — quer dizer desejo de nada, morte em vida, falta de valores para agir, descrença em um sentido para a existência. A desconstrução pretende revelar o que está por trás desses ideais maiúsculos, agora abalados, da cultura ocidental”(6).

Repetição

Os textos de outros autores que cuidam do tema repetem, de modo geral, o que está dito na citação acima, com variação apenas de linguagem e de estilo. Falam do “esgotamento” dos grandes sistemas de saber, falam da “crise de legitimação”. Do “fim das grandes filosofias explicativas”, dos modelos de racionalidade, da desconfiança com relação aos “grandes textos esperançosos”, da “dissolução de toda espécie de narrativa totalizante que afirme governar todo o complexo campo de atividade e da representação” (7). Mas podemos dizer que esses textos apresentam também outra constante. Trata-se da referência que invariavelmente fazem referência à morte do sujeito que emergiu ou foi construído pela filosofia moderna. E aqui está uma questão que nos parece das mais graves. A ilação a ser feita prontamente é que o sujeito da pós-modernidade é destituído de substância. Isso, aliás, é algo que os especialistas afirmam peremptoriamente. O fenômeno da dessubstancialização do sujeito liga-se, segundo eles, a vários fatores, mas há um em particular que nos chama a atenção e que é decisivo para o esclarecimento do problema. Trata-se do nihilismo que o pós-moderno ameaça encampar ou “encarnar”. De fato, tendo impugnado ou dado adeus a identidades fixas, tais como Deus, Céu, Desenvolvimento, Consciência Social, Grandes Ideais, Sentido para a História etc., o homem respira um ambiente no qual “viceja uma ideia tida como arquissinistra: o nihilismo, ou o nada, o vazio, a ausência de valores e sentido para a vida”(8). Em resumo, os analistas assinalaram enfaticamente que o sujeito dessubstancializado corresponde exatamente ao indivíduo, este inserido em um universo, segundo eles, informacional, desreferencializado, porque saturado de signos, imagens e cópias (simulacro). Assinalam enfaticamente o que consideram traços característicos do ambiente em que vivemos: volatilidade, efemeridade, instantaneidade e consumismo. Estão falando, portanto, de uma sociedade que nos é bastante familiar: a sociedade do “descarte”, de que fala Alvin Toffler, a qual é capaz de atirar ao lixo não só bens e produtos consumíveis, mas também “valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apegos a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser”(9).

Um dado preocupante é que os autores parecem recusar tom otimista em suas análises — estas seguem mais ou menos o mesmo diapasão tanto no uso da linguagem como na visão que passam da pós-modernidade: uma visão em que o otimismo e as certezas cedem passo ao desencanto, à desilusão e ao “mal-estar”. Rouanet, por exemplo, em Mal-estar na Modernidade, apresenta-nos um “quadro sintomal” por assim dizer, da sociedade e da cultura do mundo ocidental que reputamos irrecusável. Realmente, o texto, fundado em categorias teóricas da psicanálise — a qual “conhece a indomesticável natureza pulsional do homem”,(10) aponta para os riscos que se corre de uma regressão a estágios da horda primitiva. Diz Rouanet:

“Em nossos dias, podemos falar num mal-estar moderno, ou num mal-estar na modernidade. É a forma contemporânea assumida pelo mal-estar na civilização (…) A natureza pulsional do homem, sendo o que é, a todo momento pode interromper de novo as forças que conduzem ao racismo, ao nacionalismo, à guerra (…) as barbaridades cometidas pelas nações civilizadas comprovam essa regressão a estados psíquicos próximos da selvageria primitiva” (11).

Esse é o quadro que os intérpretes da nossa época apresentam. Um quadro, sem dúvida, apenas sintético e panoramicamente abordado por nós, mas, no qual, com bastante empenho e boa vontade, se podem ver elementos marcantes e específicos da hora em que vivemos. Podemos ver elementos que ensejam um conjunto de explicações sobre o ethos ou a identidade profunda dos nossos tempos. Ao apresentá-lo, nosso intuito é chamar a atenção da comunidade para ele, e declarar nosso interesse em que o debate prossiga e se aprofunde, de modo a resultar em diretivas norteadoras e ações mais consistentes, principalmente no que diz respeito às coletividades voltadas para a formação e promoção educacional do homem, coletividades de que fazemos parte com orgulho sagrado.

(Publicado na Revista da Área de Ciências Humanas – 01 (01), 1995, da UniABC, Universidade do Grande ABC).

Notas

  1. FIORI, José Luiz. Sobre a “Crise Contemporânea”: Uma nota perplexa. Síntese

Nova Fase. Belo Horizonte, v. 20 (62), 1993, p.387.

  1. ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na Modernidade. São Paulo, Companhia das

Letras, 1993, p. 97

  1. FERREIRA DOS SANTOS, Jair. O Que é Pós-moderno. São Paulo, Ed. Brasiliense

(Col. Primeiros Passos), 1993, p. 11.

  1. ROUANET, Sérgio Paulo. In: NOVAIS, Adauto (org.). Os Sentidos da Paixão. São

Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 449.

  1. FERREIRA DOS SANTOS, Jair. Op. Cit., p. 72.

  2. CONNOR, Steven. Cultura Pós-Moderna. São Paulo, Ed. Loyola, 1993, p. 16.

  3. FERREIRA DOS SANTOS, Jair. Op.cit. p. 10

  4. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo. Ed. Loyola, 1993, p. 23

  5. ROUANET, Sérgio Paulo, op. Cit. P. 118.

  6. Ibid. P. 96 1 113.

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