‘Sociedade excitada’
Sociedade excitada — Filosofia da sensação concerne ao título e conteúdo de um livro do pensador alemão Christopher Türscke (Campinas, Boitempo, 2011). A expressão comprova ser de grande vitalidade e poder explicativo, o que a inclui no crescente rol de termos empregados pelos analistas para designarem ou darem expressão às nossas sociedades atuais. Mais que isso, ela nos põe de sobreaviso quanto a algumas deformações que marcam o caráter profundo e essencial dessas sociedades em que vivemos.
A obra de Türske, balizada em pressupostos e orientações da filosofia, examina a questão da sensação, deixando evidente que, nos dias que correm, o sentido desta torna-se indissociável da percepção e do espetáculo. E o leitor há de notar que o texto incide sobre dois eixos ou dois planos de interesses, cada qual solicitando toda atenção possível. O primeiro é o do indivíduo, que, afinal, é a matriz ou universo onde tudo começa; nele é que se localizam o sistema nervoso, o aparelho sensorial, a fisiologia das emoções, abertura para estímulos do mundo externo, a propensão hedonista, as inclinações para compulsões, vícios e repetições que levam à morte. O outro é a totalidade social, isto é, os processos sociais mais profundos e estruturais. Lida-se aqui com forças decisivas que impulsionam o modelo cultural do nosso tempo, e que apenas menciono: novo capitalismo global, entendido como inédita expansão dos mercados, da mercadoria, da mercantilização da vida, dos meios de comunicação, informação, propaganda e marketing, geradores de incomensurável fluxo de mensagens e imagens, como também fomentadores de hábitos, necessidades e padrões mentais; competições desenfreadas; escalada das drogas (estimulantes, Prozacs e outros). Mas, veja que se trata de um “duplo movimento” e não da existência de planos estanques; a perícia do autor assegura que estes se costurem dialética e inseparavelmente.
Indivíduo narcisista
Importantíssimo constatar, pois, que as páginas do livro trazem à luz a “sociedade da sensação”, assim chamada porque é, antes de tudo, sociedade do audiovisual, e porque as pessoas que a povoam, apesar da sua imensa diversidade, vão se transformando — todas elas — em destinatárias de mensagens e “choques de imagens”, conforme reiterada expressão do autor. Por ser, em suma, um ambiente cultural produtor de vivências e estados de excitação permanentes, cada vez mais alastrado de indivíduos buscadores de emoção, de gente que vive de atração em atração, de moda em moda, ou em febre consumista, querendo sensações, buscando e entregando-se ao choque de imagens. No limite, porque é aí que surge o personagem portador das marcas e características distintivas da época: o indivíduo narcisista. Ei-lo, em atos de exibição e jogos de cena perante espectadores. Filho da sociedade do espetáculo, cujo imperativo categórico reza que ser é ser percebido, reparem narciso, o indivíduo que vive em paz e em acomodação com o seu berço de origem — não por causa das faculdades de pensar, está claro, senão devido ao prazer das estimulações dos órgãos dos sentidos proporcionados com fartura por esse berço.
A inferência a se extrair é que os impactos da “sociedade da excitação” sobre os indivíduos são inimagináveis, ao ponto de lhes alterar as próprias estruturas neuronais e, portanto, as competências de se relacionar com o mundo (pensar, p. ex., na população infantil). Ao que entendo, o sujeito perde densidade; passa a ser mais raso, empobrecido, definhado em sua consistência.
Ora, não se comete exagero ao afirmar que há movimentos religiosos, especialmente certos setores evangélicos, que contribuem para alavancar a sociedade aqui analisada. Tenha-se presente o exemplário de programas televisivos, em que espalhafatosos pastores, “bispos” e “apóstolos” se apresentam. Inútil esperar a “palavra forte” que alguns deles prometem; ela não virá — não pode vir — pois a fórmula de sucesso que aperfeiçoaram vai noutra direção: calca-se, justamente, no choque de imagens, na propensão das multidões para se deixar excitar, bajular, maravilhar; enfim, no princípio de que ser é ser percebido. A agravar o mal, o paradigma televisivo se propaga por igrejas afora, em imitações nas formas de cultos e louvor.
A “sociedade excitada” e sua invenção maior, a televisão, avançam com poderio enorme sobre os indivíduos, destes interessando-lhes, prioritariamente, o aparelho sensorial da visão. É inaceitável, porém, que o cristão se preste a tal redução, posto que a sabedoria da Bíblia eleva o ser humano à imagem e semelhança de Deus, ou seja, é irredutível à dimensão corporal apenas: “O espírito do homem é a lâmpada do Senhor, a qual esquadrinha todo o mais íntimo do corpo” (Pv. 20:27).
Nilberto de Matos Amorim
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