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Sobre leis e tapeação: o caso da que proíbe palmada em criança       


A man holding a black belt in front of a crying child

Ora, é fenomenal a propensão do Estado brasileiro para reagir aos problemas que afligem a população por via da edição de leis e decretos. Trata-se de uma herança profundamente arraigada, é uma marca que nos acompanha desde os primeiros colonizadores. Estado que por longos períodos acostumou-se a andar distanciado da órbita da nação, isto é, distanciado do mundo real da história e das coletividades de governados, cavou, entre ele e este, um fosso, uma dualidade ou mesmo uma “esquizofrenia” que se traduz em termos daquilo que é “oficial” e daquilo que é “real”, condição em que prosperou uma visão “jurisdicista”, segundo a qual constituições, leis, decretos e regulamentos oficiais representam panaceias ou remédios para todos os males. Daí a quantidade diluvial de leis que nos assolam (nossa proverbial cultura legiferante), daí um Estado que dita leis à granel, tantas delas inócuas, ilegítimas porque não tem no povo fonte e solo de suas origens. Sem se falar das leis que servem apenas de “cortina de fumaça”, de mascaramento dos problemas, de apaziguamento de consciências, de subterfúgios ou tapeações — enfim, leis que servem mais para desmoralizar a justiça que promovê-la.

E quanto à lei que ora nos ocupa, acaso a explicação causal para ela também estaria naquela índole legiferante, de tão antiga tradição, que procura resolver as coisas à base de “canetadas” oficiais? Como a dúvida paira pesadamente, melhor é dizer que o problema do Brasil não é tanto a necessidade de mais leis, o seu problema consiste em fazer com sejam cumpridas as leis que já existem (pouca educação e muita impunidade, os males do Brasil são).

Uma coisa é certa: vivemos tempos marcados por todo um conjunto de mudanças de grandes proporções, com o consequente surgimento de um momento histórico novo, carregado de novos desafios e novas exigências para todos nós, em termos de sensibilidade, competências, discernimentos e atitudes perante a vida de um modo geral. Consumismos, vulnerabilidades, riscos globais, destruição ambiental, criminalidades, consumo abusivo de drogas, exclusões de pessoas, incertezas, inseguranças, surgimento de novos poderes, novos interesses, éticas, valores, deuses e objetivos são, sem dúvida, alguns desses fenômenos que vemos eclodir ao nosso redor. Mas, dentre todos os desafios, salienta-se um em especial que nos preocupa sobremaneira, pela nocividade que representa para a vida, para a paz, para as comunidades, para a cidadania e para a própria sobrevivência da humanidade. Estamos falando da violência, mal endêmico que vitima a todos nós sem exceção de um modo ou de outro, ainda que, provavelmente, não de forma tão cruel quanto vitima as crianças. Claro que se trata de um fenômeno antigo, mas que assume, na atualidade, formatos, amplitude e modalidades de manifestação bem peculiares, razão porque deve ser entendido como ocorrência que faz parte daquele citado conjunto de mudanças que ora se processa.

Sad child suffering and parents having discussion

Foco simplista

Logo, evidencia-se que o objeto perante o qual estamos (violência endêmica da atualidade) recusa abordagem com foco simplista de uma lei apenas. Urge, antes, adotar-se ações de conjunto, abrangentes, sistêmicas. A afirmação quer significar que se faz urgentemente necessária a participação de segmentos mais amplos da sociedade — que a família, a escola, a igreja, as mídias, os governantes, as empresas, enfim, a sociedade organizada de um modo geral devem se qualificar e se munir de princípios orientadores adequados para enfrentar a questão. Lastimavelmente, porém, princípios ou valores são artigos cada vez mais escassos em nossas sociedades e, quando eles faltam, nem crianças nem adultos estão a salvo. Arrazoando a respeito da dissolução das legitimidades e das instituições — enfim, da crise de autoridade do homem contemporâneo — estudiosos chamam a atenção para a sintomática insatisfação dos pais e dos educadores com relação ao mundo, levando-os à evasão ou à recusa em assumir responsabilidade ou autoridade: “É como se os pais dissessem [aos filhos] vocês não têm o direito de exigir satisfações. Somos inocentes, lavamos as nossas mãos por vocês”. Tais estudiosos se dão conta do desaparecimento tanto de pais e professores como da infância. Os professores se tornam meros “animadores” ou “facilitadores”, e com a infância ocorre o que classificam de “déficit de socialização da sociedade contemporânea”, fenômeno que consiste basicamente na perda da capacidade das instituições educativas tradicionais — em especial a família e a escola — de “transmitir com eficiência valores e normas culturais de coesão social às crianças”. Prevalece a percepção, portanto, de que mínguam-se em nossa sociedade os valores fundamentais que são, na verdade, condição de possibilidade de o vínculo social ser mantido, inclusive os que enlaçam adultos e crianças. E o diagnóstico desse vácuo pelos analistas da contemporaneidade explica a truculência dos adultos contra crianças indefesas, mas explica também a proliferação tanto de pedagogias quanto de leis piegas, “animadoras” ou “facilitadoras” — autênticas tapeações.


teenage problem

Sim, há algo de inexequível e demagógico nas pretensões da lei ora em apreço.

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