Sócrates, bumbum e professor
Em tarde de domingo, eu preparava aula de Filosofia da Educação para uma turma de curso de pedagogia. Mas, vou logo dizendo que não se tratava de um caso de mal-aproveitamento do dia de descanso; a experiência foi, verdadeiramente falando, muito proveitosa, uma fruição mesmo — mormente a parte em que eu estudava a teoria moral de Sócrates, o extraordinário gênio grego.
Ora, sabido é que Sócrates surge em um contexto de relativismo e crise de valores; que, no pleno dessa crise, apresenta-se ele perante seus concidadãos com um programa de reforma da moralidade. Apresenta-se em sua Atenas com um projeto utópico, com um ideário, uma missão de vida, a qual tinha por primazia o homem — a melhoria e o aperfeiçoamento do homem. Melhoria e aperfeiçoamento significando, acima de tudo, debate e defesa intransigente das virtudes ou valores da interioridade da alma (Temperança, Coragem, Verdade, Justiça, Amor, etc.). Não se desconhece que assim viveu ele, resolutamente imbuído de corpo e alma dessa missão, enunciando-a incessantemente por onde fosse, o que, como não é de surpreender, acarretou-lhe cárcere e execução.
Ousadia em dizer ‘não’
Eis-me, portanto, naquela tarde de domingo diante desse excepcional fenômeno pedagógico, ou de ideal de melhoria e educação do homem. E fui fundo no assunto. Ou seja, empenhei-me intensa e vagarosamente em inquirir sobre o tipo de alicerce em que ele (Sócrates) fundava seu ideal. Fundava-o, concluí, numa concepção original, densa e profunda de homem: a de um ser dotado de instância divina, a psique, isto é, precisamente a alma, ou aquilo que, para ele, vem a ser a essência do homem, “a sede de sua atividade pensante e eticamente operante”. Repare-se nisso que a pessoa humana tem importância fundante e primordial, não sendo por outra razão que a essa instância divina no homem, a essa alma, ele atribui valor supremo e absoluto, descrevendo-a como o bem maior e o tesouro mais precioso. Donde ensinar também que se deve cuidar da alma mais do que qualquer outra coisa; mais, é claro, do que os bens do corpo.
Só isso bastava para atrair ódios e perseguições. Acontece que seu pensamento e ação ainda se voltavam para os costumes, para a moralidade. Explicitando melhor, Sócrates haveria de se deparar com a questão da conduta dos homens frente aos prazeres e às paixões, tendo tido a respeito disso refregas memoráveis com seus adversários.
Efetivamente, o uso e abuso dos prazeres preocupavam, e muito, esse profundo conhecedor da interioridade do homem. Repetia incansavelmente que as massas são vencidas ou arrastadas pelos prazeres; afirma que elas reduziam o sumo bem ao prazer e o prazer era o elemento motivador de suas ações. Em várias oportunidades, põe à mostra temíveis e insuperáveis poderes que habitam o plano íntimo e espiritual do homem: os poderes dos apetites e desejos, os quais estariam indissoluvelmente ligados aos prazeres, e a força ou energia destes poderiam conduzir a alma a uma rendição, ou — pior ainda — a um estado de desgoverno e de extrapolação da ordem e da medida, valendo dizer, a uma condição de tirânica escravidão.
Por tudo isso, pode-se afirmar com certeza que Sócrates, em certo sentido, era um reacionário, isto é, era um sujeito que ousava dizer não, que se movia na contramão da história e da tendência geral do seu tempo. E, efetivamente, disse não ao “pensamento geral” ou à “moda”, principalmente quando o que prevalecia era se dar largas às paixões, e quando isso estava sendo bastante fomentado por uma corrente de mestres que se julgavam lídimos representantes das ideias mais avançadas do campo da formação de opinião e, sobretudo, do pedagógico.
Desconsolo
Contudo, em dado momento, comecei a me lembrar da minha turma do curso de Pedagogia. Fortes imagens dela, principalmente relacionadas com a inapetência para a reflexão filosófica, sobrevieram, de repente, à minha mente, e fizeram interromper o que estava fazendo. Havia qualquer coisa de excessivo, de enormidade, na aula que eu estava preparando para aquela classe, pensei. Daí a pouco, estava indo e vindo de um canto para outro dentro de casa, sentindo meu entusiasmo ir arrefecendo cada vez mais. Por fim, fui dar por mim diante do aparelho de televisão, mais precisamente, diante do programa Domingão do Faustão. Ali, vi logo que a “filosofia” era bem outra. Ali, o que contava era o corpo. Corpos em movimento, dançantes. Corpos de mulheres, seminus, tomados em close, da cintura para baixo. Fui para outro canal, mas este praticamente repetia o gosto e o conteúdo do primeiro: dois jovens de corpos esculturais, dentro de uma banheira cheia d´água; ela, de biquíni, “tentando impedir” que ele, de sunga, apanhasse sabonete do fundo da banheira. E, seguidamente, veio o que era a grande curtição nacional do momento: “a dança da garrafa” e “a dança do bumbum”. Isso mesmo: ela, aquela moça “loira” requebrando e “baixando devagarinho”, a câmara focando o bumbum famoso de Norte a Sul (não esqueço de uma cena que presenciei nos fundos das caatingas do Pernambuco com Bahia, em que um sertanejo humilde, assistindo com olhos fixos e com respiração suspensa à dança da dita “loira”, exclamava: “Eta galeguinha da peste!”).
Perplexidade. O que estava vendo na tevê, pensei, contrastava flagrantemente com o conteúdo da aula que estivera preparando. Sócrates e a televisão: dois mundos, duas realidades, duas defrontações — considerei com meus botões. Um se traduzia por elementos categoriais como espírito, alma, razão, consciência, virtude, moderação, ética, etc.; a outra representava o seu contrário, a negação do primeiro, cujo interesse soberano é o sensacional, o espetaculoso, a exacerbação do corpo e dos sentidos, a mercantilização do erótico e do baixo-ventre. Mas, qual dos dois pode concorrer para melhorar, dignificar, enobrecer e educar o homem? Qual, contrariamente, para sua redução, coisificação e aviltamento? Qual dos dois detém mais poderes para convencer e conquistar “Ibope” junto ao povo; qual é o que, neste fim de século, “faz a cabeça das massas” (inclusive de crianças), bajulando, estimulando e explorando-lhes as paixões?
Mas, uma coisa era certa: o contato com a tevê fez crescer dúvidas e conflitos em mim. Aumentou a sensação de que algo de paradoxal e de exorbitante havia na aula que estivera planejando; era como se o pensamento de Sócrates houvesse se tornado, subitamente, demasiado indigesto, caduco ou fora de vigência para aquele meu grupo de alunas.
No dia seguinte, ao invés da aula prevista, optei por um misto de “polêmica filosófica” e “pesquisa” sobre o uso da televisão na escola. A suspeita de que aquelas alunas reproduziam ou retransmitiam nas escolas, onde atuavam como professoras de alfabetização, os conteúdos televisivos acima assinalados comprovou-se com a força de evidências cabais: várias declararam já terem ensinado e levado as crianças de suas escolas a apresentarem a dança da garrafa e a dança do bumbum, em datas festivas ou comemorativas. O argumento delas é que tais conteúdos faziam parte integrante do cotidiano das crianças, consequentemente, “motivavam”, tornavam as aulas “mais interessantes e movimentadas”. Desconsolo. Reproduziam tão somente e precisamente o que a tevê tem de pior e mais infrutífero.
Nilberto de Matos Amorim
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