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O que aconteceu com a verdade?


pinocchio liar with big nose

Tal perecimento corresponde, sem dúvida, a uma tragédia, notavelmente percebida pelo jornalista americano Matthew D’Ancona no livro Pós-verdade – A nova guerra contra os fatos em tempos de fake news (Faro Editorial, 2018). E quem o lê constata, logo à saída, que o aterrorizante fenômeno da “pós-verdade” tem data de nascimento: “2016 foi o ano que lançou a era da “pós-verdade de forma definitiva”. Não que ele já não tivesse se manifestado antes, principalmente no campo político — o qual, aliás, vai abastecer D’Ancona de primorosos argumentos. “Os políticos sempre mentiram”, afirma. E, trazendo à tona a recomendação de Maquiavel — de o governante ser “um grande fingidor e dissimulador” —, cita notórios praticantes da arte de mentir: Nixon, Reagan, Trump, Bill Clinton (caso Mônica Lewinsky), Vladislav Surkov (“Rasputin de Putin”). Mas, se 2016 é apontado pelo autor como marco inicial é porque há acontecimentos justificando-o. A eleição de Donald Trump é um deles; o outro é a Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia, mediante triunfante campanha baseada em slogans não verdadeiros). Para não falar do surgimento de sites e mídias sociais que, desdenhando os fatos, a razão e o saber, disseminam difamações e fofocas. Sem nunca esquecer também da onda de populismo que abala ortodoxias e instituições democráticas. Foi, ademais, em 2016, que os dicionários Oxford escolheram “pós-verdade” como a palavra do ano, assim definindo-a: “Circunstância em que os fatos objetivos são menos influentes em formar a opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal”.

A definição oxfordiana serve como ponto de mira para o autor mostrar que “pós-verdade” se traduz em termos de desprezo pelos fatos, subversão da realidade, manipulação de consciências, forjamento de hábitos, indústria da desinformação, animação de auditórios, shows, máscaras e poses, populismo impostor, apelos patéticos, lágrimas de emoção e entusiasmo, adesão a ideias pós-modernas etc. E o êxito explicativo do termo realmente se concretiza, dado que, para ele, “pós-verdade” não é mero sinônimo de mentira — longe disso. Diz respeito aos modos de conduta e de reação do público em face dela, isso ocorrendo num cenário em que as emoções e os sentimentos triunfam sobre o racional, o pensamento e o saber; vale dizer, num âmbito em que o público tem preferência por narrativas fantasiosas e tendenciosas, em detrimento da evidência ou da verdade objetiva. Daí que a leitura de D’Ancona pede o reconhecimento de um ambiente cultural de crescente incapacidade para a indignação, onde se dissemina amplamente a apatia diante da mentira — e até mesmo a convivência com ela. A “pós-verdade”, dessa maneira, concretiza a afirmação de Rousseau: “Tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo”; ou a de Mário Ferreira dos Santos: “Escândalos já não escandalizam”.

É claro que a cultura denunciada por D’Ancona marca forte presença entre nós. Não é por acaso que, logo na apresentação do livro, consta a declaração de que o Brasil adentrou na “pós-verdade” sem nunca ter conhecido a era da verdade. E há provas disso por toda parte, diríamos. Nosso campo político, contudo, sobressai-se na comprovação disso. Haja vista a constelação de arquimentirosos que nele pululam, em nada ficando atrás dos campeões globais citados por D’Ancona.

No tocante à área da educação, verifica-se que ela constitui solo fértil para a proliferação da “pós-verdade”. Mas, isso é uma outra história, muito bem-abordada, aliás, por Celso Antunes no livro Escola Mentirosa: Sucesso ou estagnação (São Paulo, Paulus). Aqui, o leitor, afeito já a descrições dessa escola mediante termos ásperos, depara-se com um Antunes dando passo adiante nessa mesma linha de vocabulário: “Ambivalência”, “hipocrisia”, “teatro”, “faz de conta” e … “mentirosa”. Depara-se, se preferir, com exímio retrato de uma escola “fake”: escola cujas aulas não ensinam, cujos livros e apostilas tapeiam, computadores que dormitam trancados em salas secretas, planejamento de mentirinha, recuperação que é uma farsa, avaliação que é uma balela e projeto que é enganador. Mas não apenas isso. Há o currículo proclamando-se interdisciplinar quando, de fato, é uma coleção de disciplinas soltas, fragmentando o conhecimento e incorrendo no mesmo vício da mentira. A apatia e a perda da capacidade de indignação completam o quadro. E justo a escola, instituição que, por todos os títulos, tem a missão de fazer face ao terrível vácuo ético-moral que assola o País. O que aconteceu com a verdade?

Nilberto de Matos Amorim

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