O balneário
“Estou passando uns dias aqui no Balneário [Camboriú]; por que você não vem para cá para nos conhecermos melhor?”
As palavras de Helena soaram como música encantadora aos ouvidos de Otaviano. Finalmente ele ouvia o que mais esperara nos últimos dias — o convite de Helena para ir juntar-se a ela na praia. Curto convite, é verdade, mas quando e como Otaviano o ouviu, o que era curto se transformou em mensagem mais que completa e mais do que promissora.
E, em poucas horas, Otaviano já estava na estrada à toda velocidade rumo ao Balneário. Uma empolgação só, que era por Helena, mulher que, num crescendo, tornava-se senhora absoluta dos seus pensamentos. Com isso, durante o percurso, ele não prestava atenção no mundo das coisas, pois era como se este — montanhas, matas, vales, rios, horizontes, postos de polícia rodoviária, pedágios, distâncias, tudo — tivesse perdido existência em favor daquela presença bem maior e mais real: Helena! No seu estado de empolgação, recapitulava, nova e novamente, a experiência arrebatadora e quase religiosa de um mês antes, ao passear de mãos dadas com Helena nos parques e na igreja da cidade em que ela reside. Era um recordar que lhe trazia frases doces e imagens fortíssimas de Helena. Um recordar, também, de coisas que havia dito a ela na hora da sublime experiência de tocar e segurar-lhe a mão: “Há insensatos que dizem que o homem surgiu do macaco. Mas não entra na minha cabeça que um macaco, segurando a mão da sua macaca, seria capaz de sentir o que eu estou sentindo agora. Isso é coisa só para seres especiais — para seres humanos”. E se isso tudo — pensava Otaviano consigo mesmo — se isso tudo havia ocorrido na cidade de Helena, era certo que no Balneário suas chances mais que triplicavam; ali estaria no lugar ideal para conquistá-la de vez como a sua “garota número um”. Era assim que Otaviano perfazia o trajeto rumo ao Balneário. Quase ultrapassando os limites da razão e resvalando para devaneios e delírios. “Meus sentimentos por ela são tão grandes e tão fortes que sou capaz de enfrentar tudo, deixar tudo”, delirava ele.
Anormalidade e desacerto
Mas, chegando ao destino, as coisas não correram conforme o esperado. O Balneário, de fato, ali estava com suas belas praias, com o Sol de verão, a brisa soprando serena, o calçadão da orla apinhado de frequentadores e de quiosques, os restaurantes ao longo da avenida que corre em sentido paralelo à praia. Helena, porém, não foi encontrada. Ou melhor, até foi, mas em forma de outra mulher em linguagem, atitude e reação distintas daquelas previstas por Otaviano. Resumindo bem a história, fica dito que o encontro deles não ultrapassou o reduzido tempo de algumas horas. Com a anormalidade e o desacerto dando o tom desde o início. Começa que, após o check in no hotel, Otaviano provocou forte inflamação num dos olhos, ao manipular a lente de contato com imperícia, pressa e frenesi. E na hora de ver Helena estava com dor e vermelhidão horrendos na vista. Anormalidade. Depois, houve o episódio da praia. Helena o levou a uma que fica retirada da cidade, onde a areia forma um chão instável e o mar é bravo. Às voltas com a dificílima fixação do guarda-sol, em dado momento ele teve de ir às pressas até a água para lavar as mãos besuntadas de protetor solar. Ao pisar, porém, na areia movente, desequilibrou-se e uma onda alta o arremessou violentamente de costas para o chão. A cena repetiu-se por três vezes. Três tombos feios ante o olhar de Helena. A agravar tudo, estava com os óculos de estimação, que o mar levou embora. Quase perde a direção de volta a Helena, morto de vexame e mal a enxergando — ela que, boquiaberta, a tudo assistia de pé, a segurar o pesado guarda-sol aberto ao vento. Desacerto.
O fato é que Otaviano finalizou o dia vagando pelas bandas do Sul do Balneário. Andou que andou por calçadas, xeretou em lojas, assistiu a corridas de barcos, olhou o movimento do bondinho morro acima, morro abaixo, e foi parar no fim de uma estrutura feita de pedra que avança mar adentro — um píer mais precisamente —, sentando-se num dos bancos que há por ali. Era ao pôr do Sol. Cenário multicomposto de montanhas verdes, mar verde, brisa suave e cheirosa; principalmente de raios rubro-dourados do poente tingindo tudo, numa explosão de cores que melhorava ainda mais a beleza da cidade, vista daquele ponto. Ah, e havia também casais, muitos casais enamorados. Foi nesse momento que a consciência de Otaviano gritou um grito terrível. O estar ele sozinho, sem Helena, naquele mundo de tanta beleza. E ele bateu em retirada.
Já em plena noite, ao zapear a televisão do hotel, a atenção de Otaviano se detém num filme sobre casamento que chega ao fim. E — ironia das ironias — versos que cortavam fundo eram cantados por um dos cônjuges: “Quero dormir cansado para dormir muito, sem pensar em você/quero dormir cansado, para dormir profundamente — apagar — e de manhã acordar sem lembrar de você”. Otaviano, de modo algum, dormiu profundamente naquela noite.
‘Fui. Tchau!’
Manhã bem cedo, e ele na estrada de volta a São Paulo. “Fui. Tchau.”, a mensagem-despedida que enviou ao celular de Helena. Mas estava estraçalhado por dentro. Contraste perfeito da viagem de vinda. Salvo que, de novo, não prestava atenção no mundo em volta. Pensava era no que ouvira de Helena, quando juntos na praia, sobre as “dúvidas, medos e conflitos” que ela sentia. Otaviano fazia cálculos. Tinha posto o coração 100% em Helena, ao passo que o dela tinha quanto? 10%? 15%? De qualquer modo, torturava-o o sentimento de que acabara de perder alguém por demais precioso, alguém que procurara a vida inteira e que passara por ele feito cometa. Mas, por maior que fosse o sentido de perda, ele não se dava conta do quanto trazia em si do Balneário e de Helena e do quão esse sentimento seria para a estrada da vida toda. O Balneário e Helena: o primeiro, ancoradouro e brisa serena, mas também mar bravo; a segunda, um convite esperançoso e também a recusa delicada que derrubou Otaviano mais que as ondas bravias do mar. Um lugar e uma mulher: promessa e expulsão do paraíso, a um só tempo. Otaviano recorda.
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