O atleta e os demônios da droga
Mas, é livro que tem assunto. Aliás, dois momentosos assuntos — drogas e futebol —, ambos integrando o universo de significação do mundo contemporâneo. Não deixa de intrigar, porém, a filiação que ele mantém com determinado campo de produção cultural muito em voga de uns tempos para cá, o qual se compõe, por um lado, de um grande número de pessoas — vale dizer, de “eus” renomados, preferencialmente celebridades do mundo do entretenimento — falando de si mesmas, expressando e falando de coisas da própria intimidade; coisas que, noutros tempos, ficavam sob véus da privacidade, e, por outro, de exércitos de fruidores desse tipo de confessionalismo. Portanto, é obra que realiza a vontade de um “eu” monopolizador da narrativa, “sincero e transparente” disposto a contar, a confessar, a descortinar coisas diante dos olhos do leitor. Logo, fica entendido que o opúsculo não é de feitio a responder perguntas, principalmente a graves perguntas; ele se apresenta sem musculatura capaz de sustentar o peso de explicações refletidas ou questões complexas.
Sendo autobiografia, constata-se, logo à saída, o empenho do autor em autorretratar-se como uma soma de jovem descolado, de homem-gol, de amante do rock, ativista político, ator e, acima de tudo, libertário; enfim, como alguém, desde sempre, de índole inconformista e propenso a afrontar o “estabelecido”. A explicitação disso fica tão enfática que se confunde com a própria explicação para seu envolvimentos com as drogas. Que começou cedo, ainda na adolescência. Inicialmente, com “bolinhas”; maconha, cocaína e heroína vindo a seguir. Mas, sempre acumulando com cigarro e álcool. Estabelecida a dependência, Casagrande dá a ver as agruras por ele vividas, que, vistas no conjunto, não diferem muito daquilo que é padrão, vale dizer, daquilo que é partilhado por indivíduos vivendo condições de dependência química: prisão e espancamento policial, overdoses, acidentes, destruição da família, internação, “fissura” (intenso desejo pela droga), sessões de terapia, desleixo pessoal, perda de amigos, afastamento do emprego, solidão etc. No caso em pauta, porém, impressionam os relatos sobre aparições de horripilantes demônios no apartamento, mesmo depois de tê-lo benzido por padre: “Via demônios pelo apartamento inteiro… o formato era de homens, só que muito maior. Os olhos, vermelhos, brilhavam”, descreve. Ao falar da perda de dois casamentos, deixa entender que continua sendo golpe duríssimo de suportar: “Sempre fui louco em uma porção de coisas, mas, no casamento, eu era careta”. E quanto à bem-sucedida carreira futebolística, evidencia-se que a atitude libertária a vinca intensamente, mesclando-se ela com certas extravagâncias e excessos fora de campo, com “rusgas e tretas” entre ele e técnicos, dirigentes e mesmo colegas de equipe. De permeio, somos informados da sua participação nos históricos movimentos sociopolíticos Democracia Corintiana e Diretas, já!.
O livro de Casagrande terá o mérito de trazer ao grande público dados interessantes sobre o magnífico ex-jogador, assim como o de atender o objetivo por ele pretendido — o de fazer do seu conteúdo advertência sobre a drogadição. Mas, decididamente, é texto refratário a valores, e nisso há algo de paradoxal. Pois, se o propósito é a prevenção ao uso de substâncias entorpecentes, como admitir a recusa do autor em fazê-lo fundado em premissas de valores (alega não pretender “dar lição de moral”), ainda mais quando descreve a própria condição com formulações do tipo: “Vi o inferno”, “passeei de mãos dadas com o demônio”, “não tinha mais controle sobre o meu corpo”, “ser torto na vida parecia uma sina”, “mais alto de loucura e mais baixo da moral do homem”?
Supremo Livro
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