Espetáculo e igreja
Ora, as multidões, por vezes, tendem a perder o senso e a cometer desatinos. Estamos falando de uma que não sabe discernir entre a conduta devida aos ambientes de luto e aquela que é própria aos piqueniques ou aos ginásios de esporte, de uma que comparece a cemitério demonstrando descomunal déficit de coração e cérebro, mas com excesso de olhos, por assim dizer — olhos ávidos pelo que é sensacional e espetacular. Cena, de resto, muito consistente com a civilização em que vivemos, tão notável pela disseminação de formas de vida bizarras, de indivíduos invertendo sinais e atropelando os campos de sentido da convivência humana. E não seja esquecido que o ambiente — as sociedades que compõem a atual civilização — tem como fazer a delícia dessas multidões, cevando-as a partir dos olhos e ouvidos à base de “banhos de imagens”, preferencialmente de mercadorias, mas também de assassinatos, estupros, assaltos, pedofilia, guerras, bebidas alcóolicas, armas.
Contudo, em se tratando dessa civilização, quem tem muito a dizer é Mário Vargas Llosa, prêmio Nobel de literatura peruano e naturalizado espanhol, em A civilização do espetáculo — Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura (São Paulo, Editora Objetiva, 2013). Eis um livro que exige toda consideração, não só pela excelência da análise crítica, da radiografia perfeita das sociedades contemporâneas — mais especificamente, da cultura que elas refletem —, mas também por constituir manifesto corajoso contra os vícios e deformações que as acometem. Que o leitor cristão o examine detidamente, aquilatando o que nele consta sobre o papel que teve o cristianismo como esteio fundador da civilização ocidental, o quanto ele moldou esquemas de percepções, ideais, valores estéticos e éticos e como fez surgir formas de cultivo do espírito. Que se compenetre, por isso e muito mais, da força plasmadora da fé cristã em obras artísticas, literárias, sociais, econômicas e políticas. Examinar também as trágicas consequências daquilo que se convencionou chamar de “a morte de Deus”, isto é, do rompimento dessa civilização com as fontes nutridoras da vida espiritual e moral, só possíveis, em última análise, com a religião (o próprio autor salienta isso). Que se detenha no destaque dado por Llosa ao fenômeno da violência, integrante do séquito dessas consequências — “desencantamento”, “mal-estar”, “niilismo”, “tédio”, “grande bocejo”, desespero”, “vazio”. Pois, de fato, e consoante o convincente autor, o deslocamento da fonte nutridora da religião para a política ou o poder secular teve como desdobramento imediato a violência social, cujo ápice é atingido com as grandes monstruosidades e campos de morte do século 20. Mas, Llosa vai além, com o atribuir a origem dos males atuais de corrupção, fraudes, tráfico de influência, criminalidade, impunidade etc. ao desmonte do lastro espiritual e moral inerente à religião.
Civilização do espetáculo
A tese central do livro, porém — e sempre alicerçada no mesmo referencial daquelas perdas morais e espirituais de base —, é a deterioração da cultura e o aparecimento da civilização do espetáculo. Civilização do espetáculo? É aquela em que o entretenimento reina como supremo valor; em que o divertir-se, o escapar do tédio, constitui lei e paixão. Llosa é esclarecedor, definindo-a como a “banalização da cultura, generalização da frivolidade e, no campo da informação, a proliferação do jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do escândalo”. É claro que a noção inclui a primazia do visual, ou seja, da cultura das telas — blockbusters, videogame, tevê, telefone celular —, sob cuja égide o pensamento, a palavra e a figura do intelectual encontram seu túmulo, substituídos que são por histriões, futebolistas, atores de cinema e de novela, líderes de seitas religiosas, cantores de rock, falsos artistas e ilusionistas de toda ordem.
Por consequência, e conclusão, o livro em tela implica as igrejas de um modo geral. Embora declarando-se não religioso, o autor faz pronunciamento sobre o fenômeno da musicalização da cultura, de que a igreja cristã não escapa: “… se inverte, secularizado, o espírito religioso que, em sintonia com o viés vocacional da época, substituiu a liturgia e os catecismos das religiões tradicionais por manifestações de misticismo musical: assim, no compasso de vozes e instrumentos exacerbados, que os alto-falantes amplificam monstruosamente, o indivíduo se desinvidualiza, transforma-se em massa e, de maneira inconsciente, volta aos tempos primitivos da magia e da tribo. Esse é o modo contemporâneo — muito mais divertido, por certo — de alcançar o êxtase que Santa Teresa ou São João da Cruz obtinham por meio de ascetismo, oração e fé”. Guardadas as devidas proporções, as formulação do prêmio Nobel coincide com as do pastor Júlio de Oliveira Sanches no corajoso artigo A ditadura dos decibeis (Jornal Batista, 10/8/2014, pg. 3), referindo-se ao estilo e conteúdo da música que predomina nas reuniões convencionais da denominação e do qual recolho estas linhas: “Culto significa comunhão, edificação e oportunidade para ouvir a voz divina. Hoje as músicas são estressantes. Os solistas disputam para ver quem grita mais alto. O baterista quer suplantar a guitarra. A guitarra, o baixo. O dirigente suplanta a todos, com aleluias fora do contexto.”
Como quer que seja, cada vez mais torna-se visível a interpenetração em nossas práticas de culto daqueles elementos típicos da cultura que Vargas Llosa deplora. E quando isso acontece, pior para os ambientes de culto. O resultado só pode ser a volatilização do temor e reverência que uma casa de oração deve infundir; o sentido de santuário decai da sacralidade para a ritualística de teatro; a sublimidade da Palavra, da transcendência e da vida do espírito degenera-se em performances de palco; a centralidade de Cristo se confunde com o louvor — louvor rocambolesco, veja-se bem!, no qual adoradores, não raro, põem-se a fazer contorções corporais dignas de Madona ou de Michael Jackson. Pela sensatez, os Llosas e os Julios Sanches são muito bem-vindos com suas mensagens.
Nilberto de Matos Amorim
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