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Em torno do livro ‘A cabana’


a cabana

Certamente, A Cabana não é um tratado de teologia. É, antes, obra de ficção religiosa composta a partir de ingredientes não estranhos à vida do homem comum de todos os tempos, sobretudo do homem contemporâneo, com inscrição de conteúdo, sem dúvida, no tema da espiritualidade cristã.

A trama do livro é a experiência inusitada de um encontro entre Mack, personagem central, e Deus em um fim de semana, quando aquele se vê na situação inarredável de lidar com os próprios fardos, na verdade um feixe de problemas que, de um modo ou outro tem a ver com tragédias pessoais, violência, culpa, criação do homem, queda, mal, livre arbítrio, fé, perdão, cura interior e liberdade, entre outros. O encontro veio na hora certa. Quatro anos antes, Mack havia perdido a filha bem-amada de seis anos, assassinada por um maníaco justamente na cabana em que se dá o encontro com Deus. Quando essa tragédia sobreveio, escuridão espessa desabou sobre Mack. Perdeu o rumo e o sentido da vida. Passou a viver sob o peso insuportável de emoções doentias, por ele denominadas de “a grande tristeza”. Para complicar as coisas, na infância, o relacionamento de Mack com o pai alcoólatra havia sido mais do que desastroso. Vítima de espancamentos brutais, e o mesmo ocorrendo com a mãe, Mack vive uma meninice carente de lar. Um dia, resolve matar o pai: põe veneno na bebida dele e foge de casa. Agora, eis um homem adulto a arrastar uma vida miserável, carregada de culpas, medos, raiva, revoltas e de … a grande tristeza. É quando recebe um bilhete de Deus (ao fim do livro, ver-se-á que isso não constitui absurdo) para ir encontrá-lo na cabana que fica em local distante — lugar aprazível de florestas, montanhas e lago, mas associado como nenhum outro aos traumas e feridas da sua alma. Mack atende a mensagem divina, vai ao encontro e sai dali livre do desespero mortal, curado interiormente; retorna dele apaziguado e reconciliado consigo mesmo, com a esposa, filhos e com o Criador.

Severas críticas, porém, são desfechadas contra o livro, sobretudo por parte de alguns líderes cristãos que o tacham de herético. Destaquem-se as que se referem ao recurso algo fantástico e mesmo esquisito de que Young se vale para apresentar Deus. Este não aparece para Mack nos esplendores de santidade, não surge envolto em excelsitudes de glória e com vozes de relâmpagos e trovões. Deus é personificado por uma mulher negra, africana, bem-humorada e simples. Quase sempre está mexendo com panelas, forno, temperos e comida; trabalha usando fones de ouvido, se sacudindo e curtindo música funk. O que não a impede de, aqui e acolá, tratar de questões espirituais intrincadas, ou seja, dos grandes enigmas da vida e da morte. O Espírito Santo, no livro, é também uma mulher de origem e feições orientais, ao passo que Jesus Cristo é um homem simples, judeu, de nariz avantajado — numa palavra, alguém que não é fisicamente bonito. Com isso, evidencia-se o alcance da crítica do autor aos estereótipos de natureza étnico-cultural (não retratando Deus muito branco, ocidental, muito masculino e de olhos verdes, ele levanta a questão a respeito do papel da cultura na forja dos estereótipos de Deus; assim como a respeito do gênero de Deus: homem? mulher? Pai? mãe?).

old wooden shack

Simbologia com a alma

Alegorias e metáforas são recorrentes para simbolizar a alma, em meio das quais ocorrem “mergulho”, “voo”, “floresta”, “tempestade”, “lago”, “canoa”, “abismo”, “âmago do ser”. A própria figura da cabana, tal qual descrita pelo autor, guarda intensa simbologia com alma, não sendo por acaso que, muito sugestivamente, é no interior dessa cabana-alma que vai se verificar o encontro entre Mack e Deus. Que bela imagem, por sinal, é pensar que cada pessoa e — por que não dizê-lo? — a humanidade como um todo, quer o queira, quer não o queira, estará sempre carregando consigo essa companhia, que é a da sua cabana-alma; e quão maravilhoso é pensar que Deus conduz alguém até essa dimensão de si mesmo convencendo-a de que precisa ser limpa e perdoada. Outra sugestiva metáfora que alude à alma é o jardim em que Mack se vê trabalhando em parceria com o Espírito Santo. Muito havia de colorido e de florido e belo nesse jardim, no entanto, tinha seus espaços invadidos e sufocados por elementos estranhos: cardos, espinhos, pedras e predadores. Donde a cena do trabalho em cooperação, na qual um cavoca e afofa o solo e o segundo poda, desbasta e limpa; um arranca pela raiz ervas perniciosas e o segundo, molha a aridez, aduba, planta e impõe ordem e beleza ao caos. Outro ambiente bastante fecundo em significação no qual nosso personagem vai dar consigo é o de uma caverna, em que ecos, cacofonias, medos e sombras espreitam. A sabedoria de Deus, personificada por Sofia, mulher de sublime beleza que as sombras da caverna não conseguem ocultar completamente, também o aguarda ali. Ela o guiará na descida aos recônditos dessa caverna-alma, até o ponto em que ele reconhece que tem agido como juiz de Deus e dos outros, responsabilizando-os pelos males que arrasta e pela perda da filha. Quando, humilde, aceita que precisa de ajuda, clarões iluminam a caverna e uma etapa da sua jornada terapêutica se completara.

Apesar dos críticos, o livro tem méritos inegáveis; houvesse disponibilidade de espaço para explicitá-los, começaria pelo estilo e a linguagem, que são simples, claros e altamente facilitadores ao acesso do grande público a questões cruciantes, profundas e abstratas, tais como Deus, mal, alma, culpa e por aí vai.

Mas, o proveito mais substantivo dele talvez resida na sua ênfase à necessidade do relacionamento com Deus e com o próximo, fundado no amor. E eis aqui a razão que nos move a trazê-lo perante os membros da igreja de Cristo. O relacionamento preconizado deve se manifestar no plano da experiência de vida, na qualidade do contato real, concreto e pessoal, com Deus e com o semelhante, em contraposição a um cristianismo cerebral, conceitual, capturado pela “máquina religiosa” e enrijecido por mandamentos e regras institucionalizados. O momento, então, se oferece oportuno para uma reflexão acerca da consistência entre os paradigmas que temos na cabeça e os que estão na Bíblia quando se trata, como é o presente caso, de Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo.

Nilberto de Matos Amorim

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