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‘Caminho das Índias’ é desencaminhamento


Decorated elephant.

Desde o início da trama, divisa-se que versa sobre a paixão amorosa entre os indianos Maya (casta economicamente favorecida) e Bahuan (casta dos “intocáveis” ou miseráveis), proibidos, portanto, um para o outro em razão da tremenda barreira de castas que os separa. Um casamento arranjado pelos pais acaba unindo Maya e Raj, mas isso só em parte é solução, pois ignoram que ela casa-se grávida de Bahuan, inclusive Raj, que, por seu turno, casa-se amando Duda, uma brasileira também grávida deste. O casamento pode salvar a vida de Maya (mulher paga com a vida se unir-se a um “intocável”), mas não evita uma série de desdobramentos. Ressaltem-se, em suma, os lugares-comuns e clichês que estruturam o gênero: triângulo amoroso, amores proibidos, gravidez fora do casamento, infidelidade conjugal, conflito de gerações, camas e lençóis. No caso presente, porém, há um ethos ou atmosfera emergindo como marca distintiva e permeando o universo da novela. Em primeiro lugar, a ação transcorre em contextos espaciais bem afastados, geográfica e culturalmente falando, correspondendo aos hábitats de origem dos protagonistas, que são Brasil e Índia. Donde os dois países partilharem as locações e os espectadores poderem acompanhar as cenas que se desenrolam tanto lá quanto aqui, graças à magia do “faz de conta”.  Verificam-se também outras fórmulas e estratégias que realmente garantem algo de distintivo, muito tendo isso a ver com os ecos da cultura do outro país.

E eis, então, mais um artefato cultural, ou seja, uma história narrada em imagens, tudo conforme os moldes e cânones antropológico-sociais que a estética das imagens de massa requer.

Realmente, vivemos uma civilização de imagens. Elas saturam os ambientes da cidade, rodeiam-nos por todos os lados, colam em nossa pele e com elas vivemos nosso cotidiano. Constituem característica das sociedades contemporâneas — e a sua razão de ser tem a ver com o colossal império da indústria cultural, ou com os sofisticados aparatos e tecnologias dos meios de comunicação e informação vigentes.

O raciocínio, em suma, é que, em nossos dias, cinema, televisão, computador, videogames, teatro, jornais, outdoors e uma crescente proliferação de revistas e fotos, qual império orquestrado, tornam possível um mundo “recriado” e, mais que isso, um mundo “manipulado”, “transfigurado”, espetacular. Isso se torna tão mais evidente quanto mais associarmos tal saturação de imagens aos dispositivos da propaganda e marketing, com o seu formidável poder para intensificar ou “hiper-realizar” o mundo de modo mágico, mitificado, virtual e espetacular.

Indagações nos acodem acerca dessa vontade de ficção, mais especificamente, a respeito dessa fenomenal aceitação das telenovelas por parte da população brasileira. Tal se deveria ao vácuo educacional que assola o país? (Pouca educação e muita novela, os males do Brasil são?). Residiria na tendência que marca a natureza profunda e essencial do homem de um modo geral, de não suportar muito a realidade? Várias respostas podem ser acionadas, mas, sem dúvida, comprova-se a índole do homem para produzir ilusões, autoenganos e ficções; em suma, a necessidade irrefreável que ele demonstra para “desprender-se” ou “descolar-se” dessa realidade, aliada a outro elemento que ajuda elucidar, dar pistas, para a compreensão do fenômeno: o viés demagógico flagrado nos meios de comunicação de massa que os fazem bajular e enganar o povo.

O culto da novela apodera-se dos lares, usurpa-lhes o horário nobre, toma lugar indevido nas mentes e corações. A novela cria e propaga um culto do corpo, mas, paradoxalmente, quanto mais faz isso, mais vemos o corpo ser abusado e profanado. Quanto mais brilham seus astros e estrelas, menos se têm consciências cidadãs, mais a vida é banalizada, mais aviltada se torna a liberdade e mais grassa a servidão. Vê-se que se faz impossível final feliz.

O contexto social, porém, propicia o consumo das imagens, torna-se, pois, fértil para proliferação das telenovelas — invenção que carrega de modo privilegiado uma das tendências mais incontestes das nossas sociedades, que é o de produzir e vender paraísos artificiais em larga escala. O vazio que fende o coração do homem significa fomes infindas, sendo a mais premente, talvez, a fome de elevar a alma à Verdade. Mas, o que lhe oferecem? Oferecem-lhe promessas de coisas materiais, de prazeres e regalos para o ventre, o sexo e os olhos. Oferecem-lhe vacuidades que não saciam sua fome. O homem tem ânsia de eternidade, de absoluto, de transcendente. Porém, que tipo de transcendente lhe é apresentado? Magias, bruxarias, horóscopos, ocultismos, curandeirismos, drogas e o que o valha. Nosso ambiente sociocultural efetivamente favorece o surgimento de empulhadores, de conselheiros, de vendedores de felicidade fácil e “levanta astral”; eles se fazem presentes nas mídias, nas calçadas das ruas, nas igrejas, nos consultórios, nas livrarias, nas portas de escolas, em motéis, botequins.


The biggest Brahma, the Hindu God of Creation

É nesse contexto que a novela Caminho das Índias se esclarece de modo pleno. Está repleta de cenas explícitas de simpatia pelo hinduísmo, religião de incontáveis deuses — Brahma à frente — de maneira tal que fica assegurada ao espectador iniciação nos ritos, nas queimas de incenso, nas técnicas de respiração e de meditação, assim como nas expressões daquela religião: “Chakra”, “mantra”, “guru”, “iogue”, “carma”, “iluminação”, “purificação”, “nirvana”. Sabemos que novela é novela e vida real é vida real. Mas, num país suscetível a acender velas pra tudo que é santo como o Brasil, os efeitos dessa novela são óbvios. E, para ficar no âmbito do culto religioso, convém lembrar que o gosto pela espetacularização por via das imagens, originário do espaço profano, atualmente invade o sagrado, adentra as igrejas. Há cultos evangélicos que primam pelo jogo de cenas, a teatralização e o reality show e pouco pelo preceito bíblico do culto racional.

A ocasião se ofereceria ímpar para meditação sobre as “questões sociais” da novela, de que é exemplo a glamourização da Índia como sonegação da verdade. Também o fosso social que separa os grupos humanos na Índia (marajás numa ponta, intocáveis noutra), fosso que se cava hoje por toda parte — sem paralelo na história — entre os que são “globalizados”, isto é, os que podem participar ou ter liberdade de deslocamentos no mercado global, graças ao dinheiro (não importa a origem deste, em Dubai, tanto o escroque Cadore quanto o intocável Bahuan podem trocar de pele feito cobra) e os “localizados” — os que estão fixos na sua localidade, confinados a uma territorialidade forçada e descritos tantas vezes como “descartáveis”, “inúteis”, “redundantes”, “refugos globais”.

Interrogações. Brahma ou Cristo? Caminho das Índias ou o Caminho, a Verdade e a Vida? Nos tempos de Missões Mundiais, o povo batista há de se comover com a Índia — comover-se com o seu verdadeiro caminho, que está aberto para o envio de obreiros. Pois, o da novela é, de fato, desencaminhamento do evangelho de Jesus — a única solução para as forças que dividem os homens entre marajás e intocáveis, entre “globalizados” e “localizados”, os de Dubai (em cada cidade brasileira, há condomínios-Dubai) e os moradores de rua.

Nilberto de Matos Amorim

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