Cadê nossos hinos?
A diretoria da Igreja Batista do Ipiranga, São Paulo, reunida em fins da década de 1970, foi surpreendida com um assunto candente e fora de ordem e de pauta, cujo impacto dividiu as pessoas presentes em dois grupos opostos. Irrompeu em forma de queixa de alguém desapontado com o tipo de música que, à época, invadia as igrejas. O pastor Artur Gonçalves, dirigente da reunião, lidou sabiamente com a situação e, por final, voltou-se para o ministro de música da igreja, Marcílio de Oliveira Filho, fazendo-o ver que os novos tempos requisitavam firme posicionamento dos músicos batistas brasileiros.
Artur Gonçalves-Marcílio de Oliveira Filho: um caso de palavras certas para o homem certo. Marcílio de Oliveira Filho era músico, professor da matéria na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, arranjador, formado em teologia e, ademais, dotado de capacidade de diálogo, liderança, prontidão e dinamismo para o trabalho de Deus. Ele saiu da reunião tomado pela consciência que é própria à de alguém poderosamente chamado para uma missão.
A missão, no caso, vinha a ser a revisão, atualização, ampliação e reconfiguração do já consagrado Cantor Cristão (CC). Em outras palavras, aquela reunião seria o marco inicial de uma constelação de passos articulados que desembocaria no evento Hinário para o Culto Cristão (HCC). Ao fazer face a uma necessidade urgente, ela, desde logo, se expandiu, ultrapassou fronteiras e logrou acolhimento por toda parte. Não tardou a converter-se em movimento envolvendo gente aos milhares, sendo imediatamente óbvio que se tratava de empreendimento que exigia mobilização, em nível nacional, de uma série de grupos de trabalho compostos por músicos, poetas, arranjadores, linguistas, teólogos, historiadores e outros.
Resta claro igualmente que o HCC veio à luz guiado por premissas consistentes e fundamentais. Uma delas, sem dúvida, consistia na preservação do patrimônio recebido das gerações anteriores; é patente que os seus formuladores cuidaram de dar continuidade e complementação ao legado intelectual e artístico-teológico que viera antes deles. De fato, não se pode falar da passagem do CC para o HCC omitindo-se a conduta da “superação que conserva”, vale dizer, a conduta decisiva de se introduzir aperfeiçoamentos a uma realidade existente, sem, contudo, negá-la ou destruí-la. E bem se sabe que, a tal respeito, os elaboradores do HCC foram irrepreensíveis. Eles não fizeram tabula rasa do que já existia, antes, buscaram conciliar o antigo com o recente, o passado com o presente, o clássico com o popular. Sobretudo, souberam incorporar novas produções às que já haviam passado pelo teste do tempo, garantindo, enfim, a reunião dos dois universos – o do “antes e o do contemporâneo”; o do universal com o paroquial.
Assim é que o HCC significou enorme salto qualitativo e marco na história dos batistas. Na verdade, ele constitui obra-prima, ou se preferir, um acervo de obras-primas, contemplando inspiração divina, beleza, poesia e melodia da melhor qualidade. É, sobretudo, expressão do cristianismo autêntico; é ponto alto de excelência doutrinal-teológica. E não há de se esquecer, ademais, que representa precioso atributo identitário, no sentido de haver dotado a nós batistas de um distintivo grande e nobre, denominacionalmente falando, em meio ao caos da diversidade que divide os evangélicos.
Ocorre que Marcílio e seus pares realizaram sua obra quando se viviam os rescaldos dos rebeldes anos 1960, época de tempestades culturais. de rupturas, polaridades e prodigiosas transformações, a qual – todos sabemos – deu feição e destino à civilização ocidental que se seguiria. Importantíssimo constatar, que já então se instaurava a “sociedade da sensação”, assim chamada porque é, antes de tudo, sociedade do audiovisual, e porque as pessoas que a povoam, apesar da sua imensa diversidade, vão se transformando – todas elas – em destinatárias de mensagens e “choques de imagens”. Por ser, em suma, um ambiente cultural produtor de vivências e estados de excitação permanentes, cada vez mais alastrado de indivíduos buscadores de emoção, de gente que vive de atração em atração, de moda em moda, ou em febre consumista, querendo sensações, buscando e entregando-se ao choque de imagens. No limite, porque surge a dita “sociedade líquida”, na qual, regida que é pela lógica da impermanência, tudo caduca velozmente.
Tal cultura penetra profundamente no seio da igreja e acarreta-lhe mudanças drásticas no formato dos cultos, sendo o estilo de música exemplo perfeito disso. Mário Vargas Llosa, prêmio Nobel de literatura, em A Civilização do Espetáculo – uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, faz pronunciamento sobre o fenômeno da musicalização da cultura, de que a igreja cristã não escapa: “… se inverte, secularizado, o espírito religioso que, em sintonia com o viés vocacional da época, substituiu a liturgia e os catecismos das religiões tradicionais por manifestações de misticismo musical: assim, no compasso de vozes e instrumentos exacerbados, que os alto-falantes amplificam monstruosamente, o indivíduo se desinvidualiza, transforma-se em massa e, de maneira inconsciente, volta aos tempos primitivos da magia e da tribo”. Guardadas as devidas proporções, a formulação do prêmio Nobel coincide com a do pastor Júlio de Oliveira Sanches no corajoso artigo A ditadura dos decibéis (Jornal Batista, 10/8/2014, pg. 3), referindo-se ao estilo e conteúdo da música que predomina nas reuniões convencionais da denominação: “Culto significa comunhão, edificação e oportunidade para ouvir a voz divina. Hoje as músicas são estressantes. Os solistas disputam para ver quem grita mais alto. O baterista quer suplantar a guitarra. A guitarra, o baixo. O dirigente suplanta a todos, com aleluias fora do contexto.”
Eu vou além. A “ditadura dos decibéis” das reuniões convencionais apenas repetem o que ocorre em muitas igrejas de forma radicalizada. E em tal ambiente o HCC está sendo banido. Pasmem-se: Bach, Beethoven, Handel, Lutero, John Newton, Jane Fanny Crosby, Oswald Jeffray Smith, Wilson Faustini, Isaac Nicolau Salum, Ralph Emanuel, Marcílio de Oliveira Filho, Almir Rosa, Nabor Nunes e centenas de outros que figuram no Hinário para o Culto Cristão, são aposentados nos cultos batistas ou postos para trás pelos “levitas” da hora presente. “Culto é comunhão e edificação”, pastor Sanches? Culto significando, inclusive, oportunidade para o congregado defrontar-se com a própria interioridade (aí está Deus), em séria confabulação íntima ou “tomada de consciência de si”? Pois eu afirmo que, cada vez mais, constatam-se deslocamentos e inversões dessa noção, prevalecendo o figurino em que o pré-racional, o pictórico e o sensorial tem precedência sobre o logos discursivo ou o espiritual da Palavra. De resto, estandardizam-se cultos em que performances de palco, corpos dançantes e estridências de guitarras elétricas negam o próprio sentido de música (“música é a ciência do bem modular”; é “ciência do movimento bem medido” ou ainda a “ciência da harmonia”!).
Em conclusão, é preciso advertir que ninguém está aqui a fazer apologia do passado; que, tampouco, somos movidos por nostalgia ou desejo de que “tudo volte como era antigamente”. No entanto, em face das “guerras do louvor”, em que o absolutismo da tradição defronta-se com o absolutismo da inovação, nenhum dos dois extremos nos convém. De modo que, no presente ato, clamo contra o absolutismo de uma inovação que é origem e causa do desaparecimento do HCC – verdadeiro patrimônio da humanidade – e impõe totalitarismos às igrejas tanto de estilos quanto de instrumentos musicais “exacerbados”.
A “sociedade excitada” avança com poderio enorme sobre os indivíduos, destes interessando-lhes prioritariamente o aparelho sensorial. É inaceitável, porém, que o cristão se preste a tal redução, posto que a sabedoria da Bíblia eleva o ser humano à imagem e semelhança de Deus, ou seja, é irredutível à dimensão corporal apenas: “O espírito do homem é a lâmpada do Senhor, a qual esquadrinha todo o mais íntimo do corpo.”
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