Apresentação

“Somos todos diálogo”. A frase de Novalis é do mesmo gênero da que encontramos
em “Tecendo a Manhã”, poema de João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não
tece uma manhã: ele precisa sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que
ele e o lance a outro (...)”. O sentido, claríssimo, é de que o viver não é um jogo privado
e pessoal, tampouco que é evasão ou enclausuramento. Sugere, bem ao contrário, que o
ser humano é nada sem o outro. Mais ainda, sugere que o modo de existência
interligado não é opcional – é lei e necessidade incontornáveis.
Começa que o próprio ambiente de inserção do homem faz-se coalhado de uma
pluralidade de outros semelhantes, vale dizer, de uma massa de mensagens, apelos,
desafios, interpelações, riscos e assombros que, por si mesma, força cada qual à abertura
ao outro. Depois, o homem é ele mesmo e outros eus. Embora pareça demasiado dizer
isso, o fato é que flagramos a variedade e a pluralidade dentro de cada um de nós (“não
és um só, mas és tantos”, dizia o poeta). Hanna Arendt costumava tratar dessa questão
dos múltiplos em nós. Mantinha que o eu, no fundo, consiste de uma espécie de “dois-
em-um”, ou seja, que o eu ou o self está, de algum modo, condenado a escolher e a
carregar em si um companheiro inseparável. No caso de escolha acertada, assegura
Arendt, a pessoa teria sono tranquilo à noite e, além disso, poderia ouvir esse parceiro
silencioso, asim como conchavar, dialogar, pensar e julgar em articulação com ele.
O ensinamento parece bastante convincente. De fato, contamos com a presença
interna desse interlocutor insubstituível a nos acompanhar por toda parte. O que ele não
é, porém, é silencioso como quer Arendt. Embora invisivel e intangível, o parceiro não
deixa de ser uma superrealidade que provoca, cutuca, cobra e cobra muito. No meu caso
pelo menos, dá-se que, em diversas ocasiões, ele não me deixa dormir à noite.
Principalmente quando tenho de enfrentar os problemas que a vida apresenta por meio
da escrita de textos. Pois o preparo e o cultivo da escrita são tarefas árduas, e tão
seriamente por mim encaradas, que só consigo cumpri-las à base de muito diálogo e,
por vezes, brigas com esse duplo de mim mesmo.
No entanto, é o outro situado no mundo externo que busco e solicito neste momento.
Vale dizer que, tendo em vista os objetivos, não me satisfaço com entes virtuais ou nas
“nuvens”, que pouco me importo com elementos inanimados, sem rosto e à distância
(em que pese fazer deste sistema online o meio de união). É que os tais são incapazes de
diálogo; não realizam elucidação, nem doam sentido às palavras e mensagens. Não são
aptos, enfim, para me observar, cuidar e vigiar (pertencemos a uma espécie que precisa
não só de apoio e afirmação, mas também de crítica, censura e vigilância). Numa
palavra, careço de pessoas de carne e osso, pois é com elas que se vê o mundo, se pensa
e age corretamente. Sobretudo, busco-as para confiar a elas esta modestissima obra feita
de textos, de palavras e vozes – gritos – na pretensão de que, em assim fazendo, possa
me juntar à coletividade de galos empenhada em despertar os que dormem.
No mais, reconheço que o tom dos textos que ora compartilho tem indole sisuda, o
que pode não agradar a muitos. Sucede, porém, que o agradar não é propriamente a
prioridade aqui. Nem a busca do outro significa desejo de unanimidade, sequer de
vontade de harmonia e paz com esse outro, em torno de qualquer ideia ou posição. Com
isso, fica dito que são muito benvindos também os descontentes com o tom e conteúdo
dos textos. Mais claramente: este espaço se fará mais rico e instrutivo se contar com a pluralidade de opiniões, com as visões dispares, com o cruzamento de opostos,
contraditórios e antiteses, pois, afinal, além de sermos todos diálogo, somos, também,
todos dialética.
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